quinta-feira, 5 de abril de 2012

Bloody Rhodes - Conto 7 - "Rastros"

     - É ele mesmo? – Pergunta o detetive James Perez, enquanto os outros policiais retiram o corpo de debaixo da terra.
     - Não dá pra saber ainda... Está muito sujo, e não sobrou muita coisa... Da cabeça dele. – responde um dos cadetes, levando a mão à boca para segurar o vômito. A cena era realmente perturbadora. O cadáver já estava bem destruído. Vestia uma calça preta e uma camisa bege, aparentemente um uniforme... Uniforme de policial. Faltavam pedaços da parte frontal do rosto, arrancado com o que deve ter sido uma pancada bem violenta. O sangue misturado com a terra cobria o ferimento o tornando ainda mais grotesco. Também havia ferimentos na perna esquerda e na barriga. Seja lá quem o matou ou como o matou, com certeza estava de mau humor.
     Os policiais retiram o corpo do buraco completamente, com muito esforço, e o colocam no saco, para levá-lo ao necrotério para a necropsia. O detetive se aproxima do defunto antes que seus colegas fechem o zíper, para dar uma olhada no corpo mais de perto. O cheiro era insuportável, James quase passa mal. Trabalhava como policial fazem dez anos,  mas ainda não estava acostumado com esse tipo de ocorrência... E nunca tinha visto um cadáver tão brutalmente destruído. Ele leva as mãos ao que sobrou das roupas do defunto e encontra escondida entre sangue e terra, perto do peito do morto, uma estrela dourada. Sem muito esforço ele limpa o objeto e logo vê as letras esculpidas... “Xerife”.
     - É o Mulligan. – suspira o detetive. – E isso são buracos de bala. Coitado.
     - Coitado do chefe... Era um homem bom... Não merecia isso. – diz um dos cadetes.
     - Isso não foi uma execução qualquer... – James fecha o zíper do saco preto e os outros homens levam o corpo pro carro. Apenas o cadete Joe Morris fica na cena do crime – Enterraram ele no quintal da própria casa... Quem fez isso queria que encontrássemos o corpo... Isso é uma mensagem, um aviso.
     - O que fazemos agora James? – pergunta o cadete Joe, com uma mistura de tristeza e raiva.
     - Esperamos os caras da necropsia dizerem direitinho o que matou o Xerife, enquanto nós olhamos os relatórios do Mulligan na delegacia, pra checar se ele tinha inimigos, e tentamos rastrear o assassino. – James põe a mão no bolso e puxa um cigarro. – Vá no carro e ligue pro Henry...veja se ele já achou a viatura do Mulligan.
     - Sim chefe. – O cadete se apressa, correndo em direção ao carro.
     O detetive olha para o céu e dá a primeira tragada. Isso estava ficando complicado. Era um caso já complicado de desaparecimento, mas ele não estava levando tão a sério até ver o corpo. Mulligan sempre foi um gordo festeiro, a suspeita de Perez é que ele teria ido à cidade vizinha se divertir no Pork’s ou algo do gênero. Não era a primeira vez que o chefe saia sem avisar, mas essa era a primeira vez que ele sumia por tanto tempo. Uma semana parecia demais. As buscas tinham começado há dois dias, mas infelizmente a primeira pista só apareceu hoje... E infelizmente foi a pior possível. Apenas uma pergunta martelava em sua cabeça...quem fez isso?
     - Ei James! – grita um policial de dentro da casa! – Tem algumas coisas aqui que você precisa ver.
     James adentra a residência de Mulligan apressado, faminto por respostas. Ele encontra um dos policiais na cozinha da casa, em frente a um buraco na parede. Próximo ao buraco, diversas manchas vermelho escuro. Sangue seco. O policial coloca uma pinça no buraco e puxa um pedaço de metal amassado.
     - Calibre .44. – diz o perito.
     - Hummm...só encontrou essa bala?
     - Sim detetive... Apenas esse disparo foi realizado dentro da casa.
     - O corpo enterrado lá fora era mesmo o do xerife, mas ele levou muito mais tiros do que isso, e pelos ferimentos no corpo, deveríamos ver mais sangue por aqui. Encontraram mais manchas em algum lugar da casa?
     - Encontramos algumas manchas de sangue no carpete da sala de estar, mas muito pouco... Aquele parece ter sido lavado.
     - Recolham essas amostras pra fazer o exame de DNA, temos que ter certeza de que esse sangue é mesmo dele. E digitais? Encontrou alguma?
     - Você é novo por aqui não é James? – retruca o perito com certo tom de sarcasmo. - Estamos em Plainville detetive, não em New York. Não temos laboratórios pra isso, não temos material pra isso... Possivelmente o cara que matou o Mulligan já deu no pé e nós não temos testemunhas ou suspeitos. Esse caso acabou.
     - Não temos suspeitos ainda. Mulligan com certeza tinha algum inimigo... Um criminoso ordinário não ia fazer aquilo com o corpo a troco de nada. Aquilo foi vingança. Só precisamos descobrir quem foi. Estamos em Plainville, não em New York... A cidade é menor e todo mundo se conhece... Não será tão difícil achar algum suspeito. Esse caso só está começando. – responde James, com raiva na voz. O detetive anda então em direção a sala pra ver as outras manchas de sangue. Ele observa o aposento pequeno, dando atenção principalmente ao carpete, procurando as manchas rubras. Ele leva os olhos a cada canto do local, até encontrar uma pequena estante no fundo, perto das escadas. Ele se aproxima da estante, e vê alguns papéis velhos, empilhados junto a alguns livros. Ele examina a pilha por alguns minutos procurando alguma coisa útil, encontrando alguns documentos, notas fiscais, livros escolares... E um porta retratos. A foto estava mofada, empoeirada já tinha praticamente perdido as cores. Deveria estar lá há muitos anos sem ser tocada...na imagem,  Mulligan, aparentemente mais jovem, abraçado com o que parecia ser uma senhora, com uma criança nos braços.Um estalo se dá na cabeça de James Perez.
     - Kent! Por acaso Mulligan tinha família?! – Pergunta o detetive correndo em direção a cozinha com a foto em mãos.
     - Ele tinha uma mulher que morreu alguns anos atrás... E uma filh... – James não deixa Matt acabar, e sai correndo disparado em direção às escadas. Por que ninguém tinha falado isso pra ele antes? Uma pista, uma informante... Alguém pra falar sobre os inimigos do Xerife... E se a garota ainda estiver viva, uma testemunha em potencial. Ele se apressa pelas escadas, correndo em direção aos quartos, quando avista uma porta entreaberta. Ele empurra a porta  com força e observa o cômodo.Era um quarto pequeno, com um papel de parede de flores rosas, muito desgastado, com diversas manchas e rasgos.Tinha que ser o quarto da menina.Os lençóis da cama completamente abarrotados e desarrumados, com gotas vermelhas e escuras em diversos pontos, além de alguns pedaços de porcelana, também manchados.Deveria ser sangue.
Perez vasculha o quarto com seus olhos azuis, procurando mais pistas, qualquer coisa que o permita entender o que diabos tinha acontecido ali. Ele encontra ataduras debaixo da cama, algumas limpas e outras usadas, e uma blusa rasgada. Nada disso fazia sentido. Ou talvez fizesse. O Xerife tinha um inimigo, que o atacou fora daqui. Mulligan voltou pra casa baleado, e sua filha tentou fazer o socorro com as ataduras, mas então a casa foi invadida e Mulligan morto na cozinha, e a menina possivelmente seqüestrada. Explicaria muita coisa, mas deixaria pontas soltas demais. Pelo menos era um começo. Talvez eles devessem procurar manchas no jardim, sinais de luta pelos outros cômodos...
- James, temos um problema. – Diz o cadete Joe adentrando o quarto.
- o que foi Joey?
- Tem mais dois corpos naquele buraco. Dois garotos.
O detetive James Perez respira fundo... Isso tudo estava ficando muito mais complicado a cada segundo que passava...

*****

     - A causa da morte foi esse projétil que perfurou o crânio. Calibre .44.Estava alojado na parte posterior da cabeça. – Diz o detetive Matt Oak, observando o corpo aberto de Mulligan na mesa de necropsia.
     - Talvez vinda da mesma arma que varou o corpo dele na cozinha. – diz o detetive Perez.
     - Mas não do mesmo tipo... As balas que os legistas encontraram no corpo são do tipo Ponta Oca. Elas meio que explodem quando entram no corpo, aumentando o tamanho do ferimento, mas não são capazes de varar uma pessoa. A bala da cozinha não era desse tipo, mas pelas marcas, foi disparada pela mesma arma.
     - Quantas balas os legistas encontraram no corpo?
     - Sete. Três no tronco, três na perna esquerda e uma na cabeça.
     - Então aquele tiro na cozinha não foi no Mulligan...
     - Foi na filha dele. – Conclui Matt.
     - Ou em algum dos garotos.
     - Não exatamente... Os legistas ainda estão analisando os corpos dos meninos, mas já me adiantaram que não foram baleados. Na verdade, não há ferimentos aparentes.
     - Pelas barbas do meu avô judeu... Quanto mais respostas temos, mais perguntas arranjamos. – suspira James.
     - Pela posição dos buracos, o xerife estava olhando pra o atirador enquanto era executado. Os tiros foram feitos de frente e a uma curta distância.
     - Mas não foi morto perto da casa, pois não achamos manchas de sangue correspondentes a ferimentos dessa gravidade nas proximidades de onde achamos o corpo.
     - Então... Ou o assassino limpou a cena do crime... – Supõe o detetive Oak.
     - Inviável, ele deixou um rastro descarado pela casa, não estava se importando com isso.
     - Então Mulligan já estava morto quando chegou a casa para ser enterrado, e então o assassino seqüestrou a filha dele.
     - Estamos investigando a cena do crime errada. – diz Perez.
     - Tem mais... Ele está com diversos hematomas e cortes no tronco e no rosto, além de alguns dentes quebrados. Mas pelo que os legistas viram... Foram feitos depois que ele morreu.
     - Então alguém ainda o encheu de pancada depois de morto.
     - Precisamente, mas ainda não sabemos com o quê.
     - O Joey e os outros já analisaram os diários do Mulligan pra ver se ele prendou ou incomodou alguém barra pesada nos últimos tempos?
     - Ainda estão olhando... Mas até agora nada. Plainville é uma cidade tranqüila, e os crimes aqui costumam ser coisas bem mais leves... Eu acho que isso foi encrenca que ele arranjou em alguma cidade vizinha.
     - Talvez Leawood?Ele poderia ter algum inimigo no bar do Pork’s...
     - Não sei... Temos que rastrear alguns amigos dele e ver se alguém sabe de alguma coisa. Fale com os outros policiais pra ver se alguém o conhecia melhor...acho que o Henry pode saber de alguma coisa, eles já foram ao Pork’s algumas vezes.
     - Já ligou pra ele pra saber se ele achou o carro?
     Os detetives escutam o trinco da porta se mexer.
     - Ei seus porras, venham cá nessa porra desse caralho que encontramos o carro do xerife presunto. – diz o oficial Henry entrando na sala de necropsia. – E se apressem que eu ainda quero dormir nessa merda de noite. – resmunga o oficial.
     - Falando no diabo. – ri James.
     Matt e James saem da sala seguindo Henry, se dirigindo a sala de vídeo.
     - O carro não estava com nenhuma marca de luta ou buraco de bala, e qualquer sangue naquelas proximidades ou nele foi lavado pelas chuvas dos últimos dias.
     - Onde você o encontrou Henry? – Pergunta Matt.
     - Na estrada de terra lá na puta que pariu, perto de Leawood. – Responde Henry.
     - Achou alguma coisa útil? – Indaga Perez, curioso.
     - A câmera da frente do carro do gordão tava ligada... Os caras estão tentando passar o vídeo aqui na sala pra ver se vemos alguma coisa.  Mas eles já me adiantaram que ela tá numa qualidade de merda... O equipamento do Mulligan era bem velho e o vídeo deve tá com uma definição de bosta.
     - Oficial Henry, vamos passar a fita agora. – Diz um policial, colocando a cabeça pra fora da sala de vídeo.
     Os três entram na sala e se sentam, esperado o play no velho vídeo cassette no canto da sala, na qual estavam mais quatro policiais. O vídeo começa, mostrando a frente do carro pela estrada durante a chuva.As imagens são turvas e confusas, pois a qualidade do vídeo era muito baixa e a chuva ajudava a piorar.Eles assistem a fita por alguns minutos, adiantando sempre que possível, na esperança de encontrar algo útil.Eles vêem Mulligan saindo do carro  e entrando na própria casa, e retornando depois de meia hora.Eles vêem cerca de uma hora de gravação mostrando apenas estradas e chuva, até que se deparam com uma abordagem.A viatura tinha parado um Ford F-1000.Mulligan sai do carro, e desliga o limpador de vidros, que deixa a imagem completamente turva, devido a água caindo no pára-brisas . Daí pra frente, os policiais só escutam frases desconexas e palavras soltas na gravação... Poucas eles conseguem ouvir e compreender, devido ao barulho da chuva forte no capô. ”Saiam do carro... não me forcem... tirar vocês daí”, “Palhaço” “Deixa... paz” “Para!” e um tiro. Silêncio. São três vozes diferentes, e a única certeza é que uma delas é de Mulligan. Os policiais permanecem pensativos tentando entender a cena. Quando escutam um grito... Da voz aparentava ser a de Mulligan. Depois mais alguns gritos, dessa vez de uma voz desconhecida, diferente das outras duas que apareceram antes. “Não... eu juro”, “Rhodes”, “Por favor”, “Recado... Filh...” e mais tiros. Sete ao todo. E mais silêncio.
Os policiais assistem ao vídeo, atônitos. Escutar um assassinato é algo pelo qual eles nunca tinham passado antes. Mas o vídeo ainda não acabou... Eles vêem um borrão humano carregando alguma coisa acima dos ombros. Pelo tamanho e o vermelho,essa coisa deveria ser o corpo ensangüentado de Mulligan. O vulto joga o possível corpo pela caçamba do F-100 e se dirige a sua porta, entra e dá a partida no carro, saindo do campo de visão da câmera. Henry pausa o vídeo. James se levanta.
- Bem pessoal, precisamos de um especialista em vídeo pra deixar a imagem mais limpa pra a gente, pra conseguir rostos e a placa. Também precisamos cuidar do som, talvez isso nos ajude a rastrear o assassino, ou pelo menos entender as circunstâncias do assassinato. Temos uma possível placa de carro e um nome pro assassino. Rhodes. – O detetive Perez se dirige a um velho quadro branco no outro lado da sala, e começa a apagar os nomes aleatórios escritos nele. – Henry, preciso que você analise o lugar onde vocês encontraram a viatura mais uma vez, e depois que vá no Pork’s ver se descobre algo... Matt, você vai acompanhar a autópsia dos garotos encontrados junto do Mulligan e me dizer os resultados o mais cedo possível, e eu vou retornar a casa pra ver se encontro mais alguma coisa. Falem pro Joe procurar pelo nome Rhodes nos arquivos do xerife. Acho que temos uma pista quente agora.
- Quem morreu e te elegeu o chefe Perez? – Pergunta Henry, com sarcasmo.
- O Mulligan... – responde o detetive James ríspido - Agora deixe de viadagem e vá fazer o que eu pedi... Demos uma semana de vantagem pro assassino, temos que recuperar o tempo perdido e encontrar o desgraçado. Temos muitas questões aqui, precisamos caçar algumas respostas. – James pega um pincel e anota no quadro:

 “Onde está a filha de Mulligan?”

“Quem eram os meninos na cova?”

“Onde está Rhodes?”

“Quem é Rhodes?”

Os oficiais se levantam e rapidamente vão saindo da sala para realizar suas tarefas. Apenas James Perez fica na sala, observando as questões que ele mesmo escreveu na lousa. Ele tinha o maior quebra cabeças da sua vida em mãos, o crime mais hediondo que já tinha visto... Um misto de medo e empolgação, seguido de uma melancolia começou a fluir pelo seu corpo... Ele sorri.
- É melhor correr “Rhodes”... Ninguém foge do detetive James Perez por muito tempo... Ninguém...